O Problema
do Mal é uma antiga consideração teológico-filosófica que, em tese, surge
quando se advoga três simples proposições: 1) Deus é Todo-Poderoso, 2) Deus é
perfeitamente bom, e 3) o mal existe. Sobre isso, uma importante e antiga
declaração do tema, atribuida ao filósofo Epicuro, é chamada de Trilema ou
Paradoxo de Epicuro, no qual ele teria formulado a seguinte afirmação: “A
Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então ela é impotente. Ela
é capaz, mas não quer evitá-lo? Então ela é malévola? Ela é capaz de evitá-lo e
quer evitá-lo? De onde, então, provém o mal?” (EPICURO apud HUME, 1992, p.
136).
Eu creio
que a citação de Epicuro engloba muito do ceticismo mantido por muitos hoje
quando se trata do mal e do sofrimento como um argumento contra a existência de
Deus, o que o torna particularmente útil para se analisar e responder.
Essencialmente, Epicuro levanta uma questão importante sobre o assunto do mal
no mundo, dada a crença do cristianismo em um Deus criador todo-poderoso e
todo-amoroso. Em termos gerais, o argumento se fundamenta sobre a ideia da
inconsistência entre a existência de um deus plenamente poderoso e bom (tal
como é biblicamente concebido)[1] com a
realidade do mal, seja nas relações sócio-morais humanas ou pela própria
natureza entrópica do universo. O argumento pressupõe a inexistência de Deus
através da existência do mal, apontando, assim, o grande problema do mal.
Os
pressupostos levam à conclusão de uma contradição lógica entre Deus e o Mal, ou
seja, um se torna a negação do outro. Sendo, portanto, o mal (fator
incontestavelmente objetivo) uma prova necessária para a não existência de Deus
(fator contestável e subjetivo). Assim, se o mal existe ou não existe um ser
todo-poderoso e bom, ou se existe um ser todo-poderoso e bom como se explica a
existêcia de todo o mal do mundo?
Tal
paradoxo já foi refutado por diversos filósofos e teólogos no curso do tempo,
mas pretendo, igualmente, formular minhas considerações.
Embora o
trilema seja, sem dúvida, inteligente, ele acaba por ser carregado com algumas
pressuposições errôneas: primeiramente, uma pressuposição falsa e, em segundo
lugar, uma pressuposição realmente falha.
O que é o mal?
A primeira
pressuposição falha diz respeito à concepção do que é o mal e as implicações
que tal conceito traz para a realidade divina.
No sentido
moral, o mal só existe em um ser em relação a outro, nunca em ou por si mesmo
(igualmente o bem). A própria definição bíblica, onde a palavra “mal”
primeiramente ocorre, em Gênesis 2:17 o verbo “conhecer” (heb. yada')
envolve inerentemente, na concepção da língua hebraica, a ideia de
relacionamento e não uma simples concepção intelectual (ABARIM, 2017). Ou seja,
o mal não pode ser entendido como um ser em si, mas como uma realidade
originada a partir da relação entre os próprios seres. Portanto, o mal não é
algo concreto que podemos pegar, nem um conceito abstrato que podemos sentir ou
apenas imaginar; antes porém, está ligado à ideia de ação – de fazer ou deixar
de fazer. Nessa perspectiva, o mal não existe a menos que haja algum fator
limitador (de natureza física ou social) que altere negativamente nossa
realidade existencial. Assim, “mal” pode ser entendido como uma termo usado
para descrever o “não estar bem”, ou seja, um “não-bem” (ver AGOSTINHO, 1994,
p. 16; 2002, p. 73). Neste caso, seguindo a visão de Agostinho, o mal não é uma
substância criada propositalmente por Deus, mas acidentalmente a partir das
relações conscientes entre os próprios seres, as quais desarmonizam o bem
inato.
Portanto,
“a Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso” não por não possuir
poder ou não querer, obviamente um ser todo-poderoso e bom pode e quer, mas ao
usar sua soberania sobre a realidade, ele estaria interferindo na liberdade das
relações entre os seres a fim de promover um bem continuo, porém, suprimiria a
consciência livre à custa de sua própria vontade. O que seria uma atitude,
apesar de benéfica, ditatorial e, logo, não condizente com um ser perfeitamente
bom, o qual usa sua onipotência a seu bel prazer ignorando toda vontate e
opinião alheia. Abrindo, assim, outro paradoxo.
Deus pode destruir o mal?
Assumindo-se
que o mal não é uma coisa, portanto, não pode ser criado e, por consequência,
nem destruído. Entretanto, se tomamos como verdadeiro a concepção agostiniana
do mal como origem a partir do “livre arbítrio” humano. Ou seja, o mal existe
não porque Deus cria, mas porque ao criar seres conscientemente livres, as
escolhas desses seres, uma vez livres, podem contradizer a própria essência
moral e intencional do criador. Neste caso, o mal não é algo que parte de Deus,
mas dos seus seres criados. Por isso, antes de criar, Deus não poderia destruir
algo que ele não pode criar, nem mesmo coexistir. Tão pouco ele poderia destruir
algo que se tornou real a partir das decisões de seres finitos simplesmente
usando como respaldo sua sabedoria onisciente. Em outras palavras, Deus,
sabedor de que a possibilidade do mal era real, não poderia destruí-lo,
primeiramente por existir apenas em potência e não em ato, e, em segundo lugar,
porque mesmo após tomar existência, a sua destruição imediata do mal poria o
ser divino novamente em uma posição de limitador da liberdade humana, uma vez
que ele sabe as consequências das escolhas humanas por sua onipotência, mas os
humanos não o sabem, e ainda que sejam desastrosas precisam aprender e conhecer
suas consequências pela experiência.
Neste caso,
o mal acaba sendo um agente divino para conduzir os seres criados ao bem. Pois
sendo o mal, uma realidade sofrida e caótica, a sua não existência depende do
fazer o bem por meio de boas escolhas, as quais corroboram a vontade primordial
da Divindade.
Assim, a
eliminação do mal não depende tanto do poder de um Deus quanto das escolhas
humanas. Culpar a um deus, qualquer que seja, por nossas atitudes imorais ou
corroborar a não existência da Divindade por conta do mal que nós mesmos
criamos é, em si, uma atitude vil, pois isentamos da responsabilidade a quem
realmente é devida.
Considerações Finais
Em resumo,
a Divindade ao permitir o mal como realidade na vida humana, antes de ser um
argumento contra sua existência, pelo contrário, pode ser visto como necessário
para sua existência bem como reafirmação de seu pleno poder e bondade, já que
sua “aparente”; indiferença não é argumento de sua inexistência, mas de sua
bondade em permitir a plena e livre interação entre os seres.
No entanto,
Epicuro muito provavelmente não tinha em mente as ideias de um deus bíblico ao
formular suas considerações, embora, Hume ao escrever seus diálogos certamente
o tinha. Não há dúvidas de que há muitas outras considerações sobre esse
paradoxo que poderíamos abordar seja contra ou mesmo a favor, contudo, este
tema, a despeito de qualquer defesa a favor de concepções religiosas ou ateias,
deveria nos fazer refletir sobre nossas atitudes tanto em relação a outras
pessoas quanto em relação ao ambiente físico no qual existimos; e meditarmos
sobre como nossas ações têm consequências tanto sobre nossa realidade
físico-social como intelectual.
Referências:
ABARIM Publications. ידע. S.l., 2017. Disponível em: http://www.abarim-publications.com/Dictionary/y/y-d-ay.html#.W7aFmtdKjIV. Acesso em: 04 out. 2018.
AGOSTINHO, Santo. Confissões.
São Paulo: Martin Claret, 2002.
AGOSTINHO, Santo. Solilóquios
e a Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998.
HUME, David. Diálogos
sobre a Religião Natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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